Poeta na prateleira
resenha de "Vamos comprar um poeta", de Afonso Cruz, e uma reflexão pós-universitária
“O que é que ele come?
Qualquer coisa. Não são muito esquisitos, muitas vezes, três a quatro ocorrências por semana, chegam inclusivamente a esquecer-se de comer. Alguns abandonam a refeição a meio e levantam-se para deambular sem qualquer destino. Acontece muito ao pôr do sol ou ao luar com nevoeiro, é um comportamento típico. Não estranhem se os virem parados muito tempo como se estivessem a fazer contas. Não estão, são incapazes da soma mais elementar.”
Afonso Cruz em Vamos comprar um poeta
No primeiro encontro com a divulgação da reimpressão brasileira de Vamos comprar um poeta (dublinense, 2024), veio a questão insistente: a dos encantos e limites da metaliteratura, que costuma chegar com inegável charme a leitores (sobretudo os que se consideram ou almejam ser experientes), mas que parece se esgotar na mesma medida e sempre estar à beira de uma fórmula previsível. Felizmente não é essa a experiência com a novela de Afonso Cruz, que explora o gênero com humor cativante.
Em uma distopia dominada pelo utilitarismo, cada interação humana é quantificada, todos os objetos do cotidiano possuem patrocínio empresarial e até os nomes próprios se reduzem a siglas e códigos. Poetas e artistas plásticos são armazenados em lojas e vendidos como animais de estimação. Na família que acompanhamos na história, é a filha pré-adolescente que pede aos pais um poeta. Visto a princípio como uma aquisição inócua, esse novo morador mudará em definitivo a dinâmica familiar e a percepção que cada um tem de si. Primeiro alocado em uma vitrine, depois num canto embaixo da escada, o poeta é avistado pela última vez sem lugar.
Cruz não investe em peso na construção desse universo — o que é revigorante em meio a tantas distopias intrincadas e vistosas, mas que raramente são capazes de construir histórias interessantes. O foco de Vamos comprar um poeta é mais a sátira de um materialismo ensandecido que, afinal, está à solta entre nós, tentando imperar sua burrice de todas as formas.
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Como escrevi no primeiro texto desta newsletter, o lugar da literatura e da escrita é uma questão que tem me ocupado. Por um lado, foi com inegável alívio que encerrei meu ciclo de formação universitária ao defender o doutorado. Um rapaz que estava perto de defender a tese me disse recentemente: "eu quero terminar os estudos e só viver". Lembro de pensar isso muitas vezes durante o fim do doutorado, principalmente quando a bolsa de estudos terminou e precisei conciliar a escrita com diversos trabalhos. A tese — e de certa forma, a literatura como um todo — passou a contaminar tudo o que eu fazia como um espectro. A tese que ainda não existe por completo te olha cada vez que você não se dedica a ela, por mais merecido que seja seu ócio. Sem o fantasma da tese, eu estaria simplesmente descansando nesta tarde de domingo. Sem o fantasma da tese, eu não sentiria culpa por ter ficado gripada durante um feriado que reservei para a escrita. Sem o fantasma da tese, eu poderia estar só vivendo minha vida.
Enquanto estudante de doutorado, já antecipando a impossibilidade de trabalhar com o que pesquisei (impossibilidade para uma geração de pesquisadores), passei a ansiar por uma vida sem o doutorado que envolveria trabalho e repouso, na qual a literatura apareceria de vez em quando apenas na segunda instância. Talvez eu estivesse simplesmente traduzindo um cansaço natural ao processo, talvez estivesse me rebelando contra uma esfera reduzida na qual a literatura é também alvo de um certo utilitarismo, difícil de resistir nesse contexto. Falo de certos círculos das Letras nos quais existe pressão para que todo trabalho de curso seja publicado como artigo acadêmico, toda leitura se converta em resenha, qualquer participação em evento seja aproveitada em um certificado.
Aconteceu. Defendi o doutorado, mudei de área, alcancei uma modesta prosperidade financeira. Parei de escrever resenhas e traduzir poesia. Estanquei minhas redes sociais e meus projetos de divulgação científica. Passei a ler somente à noite, no ônibus, no parque, aos finais de semana. Li muitos textos que jamais serão pesquisados, resenhados, nem traduzidos por mim. Foi ótimo. Mas não me satisfez por muito tempo. Por que?
Porque confinar a literatura a essa esfera da vida trouxe inúmeras limitações: parei de investir em minha formação de pesquisadora, me isolei de comunidades de leitores, não pude amadurecer e partilhar ideias quando quis, senti o rápido declínio de minha capacidade de articulação. Com esse pequeno experimento, descobri que preciso de um equilíbrio melhor do que empresa de dia, leitura livre de noite. Quero que a literatura não seja entretenimento em minha vida, quero que seja de fato um ofício.
Enquanto sociedade, precisamos de espaços resguardados à criatividade e à pesquisa. Mas muitos deles estão comprometidos. O mundo de Vamos comprar um poeta, em que poetas estão à venda como animais de estimação para o entretenimento de famílias de classe média, é uma caricatura justa de um projeto político que temos de enfrentar para não acabarmos à míngua.
No romance de Cruz, é impossível negar a singularidade dos poetas e artistas. Em momento algum se cogita mudar sua natureza, tentar introjetar neles capacitação para as carreiras exatas, veneradas na distopia. O delicado ensaio que acompanha a ficção traz ainda mais elementos para refletir sobre o lugar social da arte e sobre a inutilidade no geral. Cruz encerra com tom de manifesto: “mesmo […] se nos concentrarmos apenas nos números, a falta de investimento na cultura deve-se a uma ignorância extrema”.
sou apaixonada por esse livro. ps: não vejo a hora de defender minha tese, me sinto exatamente como vc colocou.